Uma análise possível (?) para a letra e música de MPB, Vaca Profana de
Caetano Veloso
Fernando Medeiros – Brasilia, Brasil
Desde que ouvi pela primeira vez a canção de Caetano Veloso Vaca
Profana, digo, desde então, que é esta uma das músicas mais sensacionais que já
ouvi na vida. É sensacional a bateria, a guitarra, o baixo, o piano! É
sensacional a voz de Gal Costa nessa melodia pop-rock-mpb! E a letra-poema
enigmática! Me divirto, muito e deveras, quando alguém está com um violão e eu
lhe peço, com certa insistência: Toca Vaca Profana, e o violeiro me olha com
cara de: O que é isso, pelamordedeus? Uma
vez me perguntaram: Você que inventou isso?! Respondi: Quem me dera! Resposta
essa que me autoriza a dizer, aqui e agora, que seria eu poeta de um poema só,
mas feliz e genial, se fosse minha apenas e tão somente esta composição.
O fato é que, está óbvio, não é. E Caetano Veloso escreveu um livro, de
dois volumes, Letra Só (Cia das Letras: 2003), no qual lista letra por letra de
suas canções num volume e, no outro, de algumas delas, ele vai dando pareceres,
explicações, justificativas, etc, sobre como, por que, quando e para quê ou
quem ele escreveu esta e ou aquela música. Confesso, ok, confesso que minha curiosidade
maior com este livro era a Vaca Profana. E, lacrado ainda na livraria, não
folheei a obra, mas, em casa, direto eu fui ao V de Vaca, Vaca Profana e, para
minha surpresa, estava escrito nada além de:
“Estava na Europa e, atendendo a um pedido de Gal, fiz essa canção de
refrões mutantes que são difíceis de memorizar. Na verdade é também uma canção
sobre Gal. Ou melhor: procura dialogar com a persona pública de Gal. Tem muitas
sacações bacanas.” (VELOSO:2003).
E nada além disso. Tudo bem, ele não é obrigado a revelar o que escreve
e no que pensa ao escrever. Nem deve, porque o legal, o gostoso da Literatura é
o leitor tirar suas conclusões. É o leitor entender as sacações bacanas. Porém,
o livro vale muito pelas explicações de outros letras-poemas como, por exemplo,
Araçá Azul, Trilhos Urbanos, O Quereres e, claro, apesar de tudo, Vaca Profana.
Tais sacações bacanas, algumas foram elucidadas, em 1984, no LP,
Profana de Gal Costa, em seu encarte, no qual estão esclarecimentos como estes
(ipsis literis):
_ (Napoli) PINO = Pino Daniele, cantor napolitano
_ “Soul” – rithm’n’blues
_ PI = Pi (pinho ou pinheiro em catalão, como “Pino” em italiano), Pi
de lo Serra, cantor catalão, “Nova Canção”
_ PAU = Pau Riba, cantor catalão, único roqueiro da “Nova Canção”. Pau
é Paulo em catalão
_ PUNKS/PICASSOS = os punks das ruas de Londres parecem quadros de
Picasso
_ “PURETAS” = “caretas”, nova gíria espanhola
_ “MOVIDA MADRILEÑA” = nova onda “new wave” de Madrid, que tem como
lema (e nome de uma revista) “Madrid me mata”, daí “também te mata Barcelona”
_ GAUDI = arquiteto catalão, genial louco
_ “RAMBLAS” = passeio (e também calçada) em catalão, lugar de Barcelona
onde toda gente vai beber e passear. Do verbo “rambar” = flanar, perambular
_ ORCHATA DE CHUFA = bebida feita com noz, toma-se na Catalunha
_ SI US PLAU = (quase só se diz “si’s plau”) = “por favor” em catalão
Então, desde a primeira vez em que a ouvi, lendo aqui, sondando ali,
pensando acolá, ouvindo mais e sempre, aqui, ali e acolá a canção, conversando
com quem a conhece, estudando símbolos, ícones e índices desse poema-enigma,
cheguei a algumas conclusões, tão somente pessoais, que me levam a
interpretá-la, entendê-la e processá-la assim (ou não!). Vejamos. Diz o eu
lírico:
Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
O poema começa com o eu lírico afirmando no presente do indicativo que
respeita suas lágrimas, mas ainda mais sua risada. Ou seja, infere-se que ele sofre
e chora sim de vez em quando, mas que, apesar disso, respeita ainda mais sua
risada, o que nos prova o fato de que, apesar de às vezes sofrer, sua
felicidade é ainda mais importante (como de fato deve ou tem que ser).
Nessa primeira estrofe, ao dizer, também no presente do indicativo, que
inscreve na voz de uma mulher sagrada o dito de respeitar as lágrimas e ainda
mais a risada, o eu lírico faz aqui uma argumentação de autoridade, já que ele
transfere a uma mulher, diga-se, uma mulher sagrada, a autoria dos versos que
deveriam, assim, abrir a canção entre aspas!
Em seguida, e logo em seguida, ao se referir à mulher, que é sagrada,
ele entra com outro enigma: a vaca profana! Mulher Sagrada e Vaca Profana. Pra
mim, não seria meramente casual o fato de os elementos Mulher Sagrada e Vaca
Profana estarem justapostos, cara a cara, lado a lado, verso a verso, um ao
lado do outro.
Para mim, e falo tão somente por mim, esta mulher sagrada é a vaca
profana, num raciocínio que resulta de um processo silogístico. Assim:
_A mulher é sagrada porque exprime, do ponto de vista do eu lírico,
palavras fortes.
_A mulher é a vaca porque ambos elementos estão dispostos lado a lado,
em sentido de complementação entre eles.
_Vaca e mulher são seres comuns, mundanos.
_A vaca, na cultura indiana e em outras culturas do oriente, porém, é
uma deusa, portanto sagrada.
_A mulher é um ser comum, mundano, mas fala coisas importantes,
tornando-se sagrada, para o eu lírico.
_A vaca é um ser comum, mundano, animal, mas torna-se especialmente
sagrada para alguns.
_Então, para o eu lírico, a mulher é sagrada e a vaca é profana.
E, além disso, a vaca que é a mulher, e que é sagrada, põe seus cornos
pra fora e acima da manada. Ou seja, a mulher, animalizada, mas sagrada e
importante, é responsável por se mostrar afora e acima da manada, com seus
cornos, porque tem algo de diferente, algo de especial, saindo a frente e,
provavelmente, comandando toda a manada.
A simbologia da vaca, da manada e dos cornos, de acordo com o
Dicionário de Símbolos (CHEVALIER:2012), nos revela de maneira bem
interessante, bem peculiar o que se segue:
_VACA:
De um modo geral, a vaca, produtora de leite, é o símbolo da terra
nutriz. Entre os egípcios antigos, a vaca é a fertilidade, a riqueza, a
renovação, a mãe, a mãe celeste do sol; era a nutriz do soberano do Egito. É a
essência da renovação e da esperança na sobrevivência. É associada à abundância
entre os sumérios, para quem a lua era decorada com dois chifres de vaca.
_MANADA:
Entre os sumérios, enquanto a vaca é representada pela lua (com
chifres), a via láctea o é pela manada. O que se pode associar ao celestial e,
assim, ao divino.
_CORNOS ou chifres:
O chifre tem o sentido de eminência e de elevação. Seu simbolismo é o
do poder. Os guerreiros de diversos países, principalmente os gauleses, usavam
capacetes com chifres. O poder dos cornos, aliás, não é apenas de ordem
temporal. Os chifres dos bovinos são o emblema da Magna Mater Divina (a grande
mãe divina). Onde quer que eles apareçam, assinalam a presença da grande mãe da
fertilidade, evocando os prestígios da força vital, da criação periódica, da
vida inesgotável, da fecundidade. Vieram, em consequência, a simbolizar a
majestade e os benefícios do poder real.
Assim, associando tais símbolos numa possível leitura representativa ou
numa possível imagem metafórica (talvez bem pessoal), percebe-se que a vaca,
portanto, era e ainda é, para alguns, divina e elevada. O que ela dá ou produz,
o leite, é símbolo de sua fertilidade e, assim, também de sua divindade. Seus
cornos, como símbolo de elevação e superioridade, a vaca os colocando para fora
e acima da manada, eleva-os ainda mais, eleva e engrandece ainda mais sua
divindade, sua realeza (temporal e celestial) e sua sacralidade, por ser divina
e representar tais elementos. E ainda estão pra fora e acima da manada. Acima.
Se a vaca vem associada à ideia da renovação, e a nossa vaca profana
põe seus cornos pra fora e acima da manada, e se a manada é a via láctea, nesse
contexto celestial e divino, de superação e de superioridade, a vaca então
comanda a manada a partir da elevação de seus chifres, como referência e
reverência, conduzindo e incentivando a manada a segui-la com confiança e
certeza no caminho. Assim como as mães, em seu instinto materno fazem (ou seja,
comandam), a vaca, que é a grande mãe divina (Magna Mater Divina), também o
faz.
Continua, genial, a canção:
Ê!
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
Segue a "movida Madrileña”
Também te mata Barcelona
Napoli Pino, Pi, Pau Punks
Picassos movem-se por Londres
Bahia onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte
O que temos na estrofe acima é um exemplo forte de cubismo, por conta
dessas sobreposições de imagens. Aqui, buscando as elucidações do encarte do LP
Profana, de Gal, percebemos a Movida Madrileña, que deve ser seguida pelo
interlocutor, o que se nota pelo imperativo – segue (tu) –, é um estilo musical
novo, àquela altura, 1984. A Movida Madrileña, que tem por lema Madrid Me Mata,
insinua que Barcelona também deve matar. Matar de quê? Matar por quê? Como se
tratava de algo novo, deve ser ou pode matar pela novidade que se trazia e
começava naquela hora. Esse tal novo estilo musical talvez seja o leite bom que
se derrama na cara do eu lírico.
Em seguida, a sobreposição de Napoli e Pino que é Pino Daniele, cantor
napolitano; de Pi em catalão (que corresponde a Pino em italiano) e Pi, como se
vê no encarte de Profana, é Pi de lo Serra, cantor catalão da Nova Canção, o
tal estilo novo; de Pau, que é Pau Riba, que também é cantor da Nova Canção; e
de Punks e Picassos é o exercício do cubismo, como ele mesmo, o autor, Caetano,
associou em sua explicação anterior.
Sobrepor imagens é tentar recriar e refazer seus sentidos,
aparentemente desconexos, numa imagem única e talvez caótica, num evidente jogo
e numa evidente brincadeira com as palavras.
O poeta, que é baiano, termina a estrofe, dando voz ao eu lírico,
cantando Bahia onipresentemente Rio e belíssimo horizonte. Da maneira como ele
canta o verso, no meu entendimento, quem é onipresente é a Bahia. Então, a
onipresença de sua cidade é algo como se todos os símbolos sobrepostos, antes e
acima, tudo isso, já fosse, de alguma forma, contemplado pela Bahia, sua terra.
Por isso, nada lhe seria novidade. Como se sua terra já tivesse inventado um
estilo novo, que devesse ser seguido e que matava (a alguns de raiva, porque
era bom e novo. Matava porque devia ser seguido e matava porque, também e de
certa forma, era proibido – o Tropicalismo?!), daí sua onipresença.
Belíssimo horizonte, está claro, é referência à capital mineira, que,
associada ao Rio, completariam a lista de lugares em que o eu lírico viu tudo o
que viu primeiro na onipresente Bahia. E este horizonte que lhe mostra tudo
isso é belo, como ele diz ao usar o belíssimo de maneira ambígua!
E, em tempo, se a vaca é simbolicamente divina, por metonímia – o todo
pela parte –, suas tetas também o são, porque dão o alimento, a fertilidade e a
fecundidade.
A canção continua, ainda mais incrível:
Ê!
Vaca de divinas tetas
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los "puretas"
Quero que pinte um amor Bethânia
Stevie Wonder, andaluz
Como o que tive em Tel Aviv
Perto do mar, longe da cruz
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk`s blues
A estrofe acima é cantada em espanhol nos três primeiros versos
(excluindo-se a interjeição Ê!). Tal fato é o jogo, a brincadeira feita pelo
poeta de, quando possível, falar de Barcelona, Cataluña, Andalucia, e de
elementos espanhóis como, por exemplo, a Movida Madrileña ou o cubismo e
Picasso, já que ele se encontrava na Europa, provavelmente na Espanha. É uma
relação semântica perfeita, mas interrompida por ícones como Stevie Wonder e
Bethânia – americano e brasileira, além de irmã do poeta, e ainda Tel Aviv.
Um amor Bethânia, ele diz. Eu, primeiro lia esse verso como se houvesse
uma elipse de para: Um amor para Bethânia. Mas hoje, não desprezando tal
leitura, também leio Bethânia nesse verso como um adjetivo. Um amor Bethânia,
do tipo, à moda Bethânia, de acordo com a personalidade de Bethânia. Sabemos
que, de fato, Maria Bethânia é intensa. Intensa em suas interpretações
operísticas, em seus pensamentos e na defesa deles, em seus sentimentos, mesmo
que discretos, mas intensa! Um amor intenso como Bethânia. Ou um amor intenso
como os de Bethânia.
Stevie Wonder é cego. O termo andaluz, justaposto ao nome do cantor,
vindo este verso depois de o eu lírico se referir ao amor Bethânia, suponho que
o amor de Stevie Wonder pode ser pela luz, porque ela lhe falta, e por isso
seja também um amor intenso. Ou, talvez, o amor seja cego. Mas há aqui mais e muitas
simbologias. Sim, há.
E tal amor intenso, que deve pintar de acordo com o querer do eu
lírico, é um novo e outro, mas parecido ou igual ao que ele já teve em Tel
Aviv, num lugar perto do mar, que é imenso e, por isso, (o mar ou lugar)
engole, traga e consome, e também longe da cruz, ou seja, sem culpa, sem
pecado, sem dor, já que estava longe da cruz - um símbolo por excelência
religioso.
Então, para terminar a estrofe, ele volta às composições cubistas,
sobrepondo elementos, e, a meu ver, quando esse tal amor novo surgir, sem
pecado e sem culpa, ele deve vir ao som do blues de Thelonius Monk, para, mais
uma vez, conectar e dar sentido a uma costura de elementos aparentemente
desconexos!
Observo que em Eu Sou Neguinha? e em O Estrangeiro, Caetano já havia se
referido à cruz (trocando Luz por Cruz no fim do túnel) e a Stevie Wonder
respectivamente. Observo também que existe uma ligação, inclusive verbalizada e
cantada por ela mesma, entre o mar e Maria Bethânia.
Completa-se, sensacional, a canção assim:
Ê!
Vaca das divinas tetas
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas
Sou tímido e espalhafatoso
Torre traçada por Gaudi
São Paulo é como o mundo todo
No mundo, um grande amor perdi
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí!
Nessa estrofe o eu lírico se apresenta: é, a um tempo, tímido e
espalhafatoso, como uma torre traçada por Gaudi, quem, como se sabe, é catalão
(o que se associa ao idioma e a cultura espanhóis). O traçado de Gaudi pode ser
associado aos traços citados em sua personalidade, espalhafatoso e tímido, de
maneira também característica.
São Paulo, assim como Paris e Nova Iorque, é uma grande cidade do
mundo. Tão grandes que podem ser associadas ao próprio mundo. Tudo e muita
coisa acontece nessas grandes cidades. Aqui, tendo por interlocutores os
caretas de Paris e de Nova Iorque, o eu lírico diz que sem mágoas, está tudo
bem. Infere-se, assim, que em algum momento, para ele, Nova Iorque e Paris, por
serem vistas como são, foram cidades imaginadas ou idealizadas por ele como sem
a existência de caretas, cidades modernas e tal, mas quando, ao conhecê-las,
percebeu que também elas têm caretas, como em qualquer lugar do mundo e, embora
as aceite e as entenda, já não guarda mais mágoas disso.
Nessa estrofe, também, volta ao tema do amor, dessa vez perdido em São
Paulo, mas pelo qual segue em sua busca. Como se diz sem mágoas para os caretas
de Paris e de Nova Iorque, também talvez esteja sem mágoa contra os de São
Paulo e sem mágoas contra o amor perdido, daí a ideia de se seguir em nova
busca.
E segue, irônica, a poesia:
Ê!
Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas
Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes, segue em linha reta
A vida, que é "meu bem, meu mal”
No mais, as "ramblas" do planeta
“Orchata de chufa, si us plau”
Na estrofe anterior o eu lírico se apresentou; nessa, ele está irônico,
sutilmente irônico e nos avisa, nos alerta: Mas (conjunção adversativa) que ele
também sabe ser careta. Assim, apesar de se ver e de se posicionar em lugar
privilegiado, de dentro do qual, além de alertar, avisar, mostrar as coisas
vistas na Bahia e em outros lugares, tais como os sentimentos e os amores
perdidos, ele também discursa, alertando que de perto ninguém é normal. Nem
ele.
Porém, assim como a vaca, elevando seus cornos, se torna sagrada e
divina, e ele, inscrevendo suas palavras na voz daquela mulher que é a vaca e
que é sagrada, o eu lírico também se eleva. Mas de uma posição superior e
privilegiada, e só, e somente só, depois de dizer que ninguém é normal, o poeta
diz também saber ser careta, ou seja, justificando-se, apesar de se elevar (ou
também porque se eleva) ele se mostra, até ele, passível de anormalidade.
Aí, pra mudar de assunto e não falar muito, a vida, segundo ele, segue
em linha reta, essa vida que é “meu bem, meu mal” – que é o título de outro
poema do autor – para talvez dizer que a vida é assim mesmo, ou seja, é
contraditória, é antitética e paradoxal, posto que seja bem e mal, normal e
anormal.
E, para evitar um assunto pra lá de Marrakech, finaliza com um No mais,
as ramblas do planeta. Ou seja, os caminhos do planeta, quaisquer que sejam,
vão dar no mesmo lugar, porque o eu lírico flana, assim como João do Rio, e
observa em São Paulo, Bahia, Belo Horizonte, Tel Aviv, Paris, Barcelona,
Londres as mesmas coisas, os mesmos caretas, os mesmos amores perdidos (ou não)
porque, por metonímia, se São Paulo é o mundo todo, todo o mundo são essas
cidades também.
Augusto dos Anjos, quando aconselha: Toma um fósforo, acende teu
cigarro, dizia irônico que não há nada o que fazer contra a falsidade, contra o
beijo que é a véspera do escarro, acendendo assim seu cigarrinho para, então,
concluindo em êxtase vitorioso, relaxar e contemplar a vida, impotente diante
dela. Os caminhos do planeta, portanto, dão no mesmo lugar.
Aqui, finalizando no mesmo tom de ironia do poeta paraibano, o eu
lírico pede, por favor, uma Orchata de Chufa, sinalizando, sugerindo em tom de
grande descoberta - daí a ironia -, não haver nada que se possa fazer contra a
caretice, contra a vida que é, a um tempo, bem e mal, degustando então de sua
bebida espanhola. Assim, se a caretice é o que é, derramemos então chuva do
mesmo bom – que sabemos que é bom – nas almas dos caretas para, quem sabe,
possamos converter alguém da caretice, tirando-os da ignorância!
E então, finaliza, genial:
Ê!
Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas...
A última estrofe volta antitética ao começo do poema, chamando-a Deusa.
Mas a vaca não era profana? Agora, finalizando tudo, ele se refere a ela como
deusa? Então, a vaca é profana e é deusa, uma deusa profana porque, talvez ela,
assim como o amor de Tel Aviv, esteja longe da cruz, longe da culpa ou também
longe de rotulações clássicas, canônicas, do que é sagrado ou profano, amor ou
amor intenso e do que é bom ou é ruim!
Talvez por isso seja ainda interessante observar os pares (deixados de
fora da análise das estrofes acima), que são parte do refrão, e que vão, em
progressão ou em gradação (desculpe-me pelo eco inevitável!), estrofe a
estrofe, dando um sentido especial ao poema:
1. (segunda estrofe)
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
Nessa estrofe, só no eu lírico o que é bom (na minha cara), para os
caretas o que é mau. Tudo separado, como se o eu lírico, entendendo o que é
bom, quisesse e deixasse apenas para ele o que tem valor e para os caretas,
porque esses não entendem, ficasse aquilo que é mau, porque é o que lhes cabe.
Assim, talvez, o eu lírico seguisse o bom, ou seja, a Movida Madrileña, e, por
serem caretas, esses ficam de fora, sem segui-la, porque não querem e ou não
entendem.
2. (terceira estrofe)
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los "puretas"
Nessa, em espanhol, igual: só no eu lírico o que é bom (en mi
garganta), para os caretas (puretas) o que é mau. Legal observar, também, que,
em espanhol, La mala leche é uma expressão idiomática, que, como expressão
idiomática é difícil de traduzir, quer (talvez) dizer mau humor ou má intenção.
Derramar o mau humor sobre os caretas, o que, aliás, lhes seja peculiar.
3. (quarta estrofe)
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas
Meu verso favorito dessa canção é Teu bom só para o oco, minha falta e,
que apesar disso, é o mais enigmático e de difícil entendimento para mim. Mas,
o percebo assim: Teu é pronome possessivo de segunda pessoa, então o
interlocutor do eu lírico é a vaca. O bom da vaca, que deve ser o leite bom,
apenas para (preencher) o oco, o que então lhe preenche o vazio dele, ou seja,
a sua falta ou que lhe falta é preenchido de coisa boa, suprindo-o.
Então, uma vez preenchido o vazio do eu lírico, porque ele fartou-se do
que é bom, o que sobra do leite bom da vaca deve inundar a alma dos caretas
(repare: inundar!), para que, pelo excesso do leite bom, também os caretas se
preencham de coisa boa.
4. (quinta estrofe)
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas
Nessa estrofe, todo o leite, bom ou mau, na alma do eu lírico. Para os
caretas, nada do que é mau, ou seja, para os caretas o leite bom. Aquele leite
que na estrofe anterior INUNDA as almas deles. A alma é algo mais profundo e
complexo.
5. (sexta e última estrofe)
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas
Nessa estrofe final, não mais todo o leite, apenas gotas de leite bom
na cara dele. A cara é algo mais superficial. Para os caretas, agora e por fim,
chuva do mesmo bom sobre eles. Ou seja, a inundação passou e a chuva, mesmo
menor em intensidade, ainda encharca os caretas do que é bom e, de qualquer
forma, ao eu lírico, dividindo o pouco que é para ele (apenas gotas), para que
sempre sóbre mais para os caretas porque, de fato e de verdade, é para os
caretas mesmo que precisamos, para abrir-lhe as mentes, mostrar e ceder o que é
bom!
Ainda, e quase no fim, esse poema, como todo poema, pode ser lido de
várias maneiras. Uma outra leitura possível pode ser feita com o entendimento
do deboche porque, como numa resposta ao mundo das coisas sagradas, se tudo é
sagrado, então ele (o poema) é profano sim. Para o eu lírico, ser profano é
maior que ser sagrado porque pode estar levantando questões como: Quem e o quê
é sagrado? Para quem o é? Pôr os cornos acima e pra fora da manada pode ser
rebeldia de uma vaca (sagrada ou profana?) que se recusa a seguir a manada, que
se recusa a seguir a marcha instituída das coisas do dia a dia e da vida como
são.
Porém, para finalizar e, depois de tudo, o mais interessante é que, ao
longo de todo o poema, apesar de ser intitulado Vaca Profana, a Vaca é sempre
sagrada ou divina. Observe! ;-)
E, se segundo ele próprio, Caetano, a Vaca Profana é: "Na verdade
também uma canção sobre Gal", será que a tal vaca profana, que é uma
mulher sagrada, seria a própria Gal?
-0-
_ Referência bibliográfica:
.COSTA, Gal. Profana. Faixa n° 1. Rio de Janeiro: Sony Music, [1984]
2012.
.DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS: Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. 26ª edição. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2012.
.DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Objetiva: Rio de Janeiro,
2001.
.DICIONÁRIO HOUAISS ILUSTRADO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Instituto
Antônio Houaiss/ Instituto Cultural Cravo Albin. CRAVO ALBIN, Ricardo
(Supervisor). RJ: Paracatu, 2006.
.ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: POPULAR, ERUDITA E FOLCLÓRICA. 3a.
ed. 1a. reimpressão. São Paulo: Art Editora, 2003.
.VELOSO, Caetano. A Poesia de Caetano Veloso: Letra Só e Sobre as
Letras. Cia das Letras, 2003.
.VELOSO, Caetano. Faixa n° 1. Totalmente Demais. Universal Music,
[1986], 2011.
Fernando Medeiros é Professor de Literatura – Blog Ao Correr da Pena
In: Adaptado de
QUINTA-FEIRA, 17 DE ABRIL DE 2014
http://letteraliteratus.blogspot.com/2014/04/uma-analise-possivel-para-vaca-profana.html?m=1